Fim de um tempo

A esta hora na Terra
é metade carnaval, metade conspiração,
metade medo, metade fé,
metade folia, metade desespero

E provavelmente a esta hora
uma metade do mundo está dançando
e a outra metade dormindo,
há ainda outra metade limpando as armas,
outra limpando o pó das flores

Mas, [...], eu acredito que agora
exista alguém profundamente acordado

(Fevereiro – Matilde Campilho)




Escrevo a esses, profundamente acordados.

Encerro hoje uma jornada de 25 anos de sindicalismo, talvez mais. Não por acaso, escolho sair no exato momento em que o sindicalismo está em xeque. As razões da crise, que vem principalmente desde a reforma trabalhista de 2018, não cabem nesta carta.

O sindicalismo hoje em xeque é o que ganhou forma com a redemocratização, após a Constituição de 1988. Nesses 30 anos foi a principal força política organizada do país, congregando em torno do trabalho e suas representações (sindicatos, centrais, federações, partidos, etc) categorias profissionais tão distintas quanto camponeses e professores, advogados e metalúrgicos.

O impacto e a força social foram tão profundas que em 2002 elas conduziram vários sindicalistas ao poder central do país, inclusive à Presidência da República...

E foi nesse recorte de tempo, dos anos 1990 até o presente, que a geração de sindicalistas a qual pertenço acertou e errou. A herança que recebemos da geração anterior foi imensa, produto de um século de organização, lutas e conquistas, desde os fundadores, “Anarquistas, Graças a Deus”, até nós.

O legado que agora transmitimos à nova geração leva consigo a marca desses ancestrais e o nosso aprendizado. Transição geracional. Nunca fácil, nem simples. Ainda mais por estarmos diante de uma geração que tem entre suas características a certeza, a convicção do acerto. Acertarão, sem dúvidas, depois que inevitavelmente entenderem o valor do erro e a força da História.

Sair agora, no momento em que o sindicalismo está em xeque, não foi decisão fácil. Diante das mudanças postas - nas relações de trabalho, na configuração/redução do Estado, a terceira onda tecnológica em pleno andamento, a drástica redução dos postos de trabalho humano e suas consequências – é preciso que tudo se reinvente, inclusive as formas de organização social, como os sindicatos.

Essa tarefa, imensa, cabe à geração desse tempo.

A nós cabe ser o elo entre os dois tempos, fazer o diagnóstico, a reflexão, apontar linhas de saída, aproveitando alguma sensatez acumulada durante anos de crença nos valores humanos fundamentais da fraternidade e da cooperação. Valores igualmente fundantes do sindicalismo.

Valores que nortearam o caminho que me trouxe aqui, e que vejo ameaçados pelos poderes estabelecidos na nossa sociedade sob o olhar condescendente de parte das organizações de trabalhadores, incluindo a que pertenço.

A esses, colegas, gostaria de alertar: não se curvem. O diálogo desejado só é possível onde há equilíbrio de forças, onde ele não existe há o mando e a obediência humilhada.

A construção do Sindireceita não pode ser desvinculada da construção da nossa categoria nem do avanço técnico e tecnológico que, nos anos de 1990, elevaram a Receita Federal à referência em que se transformou. A vocês que continuam desejo a altivez e a coragem necessárias para preservar a história e fazê-la avançar em beneficio de todos, especialmente da sociedade brasileira e daqueles que tem no Estado sua única chance de vida e dignidade.

Termino essa pequena carta em 08 de março, dia de luta das mulheres. Não poderia encerrar sem uma reflexão sobre o fato de ser mulher no sindicalismo.

Se a política partidária no Brasil ainda é espaço árido para as mulheres, no sindicalismo ele chega à violência. O preconceito impera. Como disse um diretor do Sindireceita, aos berros, dirigindo-se a mim em uma assembleia de Analistas Tributários em Belo Horizonte: “à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer”. É disso que se trata. A uma mulher, não basta fazer política sindical ao lado dos homens, é preciso enfrentar a fúria que esse fazer desperta.

Por outro lado, se nos postos de direção há poucas mulheres, elas já são maioria na base de ação. E essa é a boa notícia. Ainda que essa presença seja insuficiente - é preciso estar nas direções – ela já intimida os furiosos.

E, claro, não poderia deixar de mencionar as exceções. Homens e mulheres extraordinários com quem tive o privilégio de caminhar nesses 25 anos. Parceiros, companheiros, camaradas, amigos. Pessoas raras, com olhar generoso para o mundo e o humano, capazes de sonhar e lutar pelos sonhos de muitos. Só isso já teria valido a pena.

E agradecer. Imensamente. Aos colegas de Belo Horizonte, de São Paulo, especialmente de Campinas, aos parceiros e amigos do Sinfazfisco Minas, do Sindsep MG, aos mais de 30 sindicatos do Café Sindical, aos companheiros da Intersindical (falhei com vocês, perdoem), aos queridos dos movimentos sociais, aos amigos, aos amigos, aos amigos, aos amados, às amigas.

Muito obrigada. Foi uma honra lutar e construir ao seu lado.


Um abraço fraterno,
Mari Lúcia Baldissarelli Zonta


Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 2019






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