Huma nidade



Na quarta feira, à convite de uma amiga, fui ao lançamento do livro Deus Dará, da portuguesa Alexandra Lucas Coelho. Ela estava acompanhada do líder indígena e jornalista Ailton Krenak. O seu povo, os Krenak, tem sua aldeia às margens do Rio Doce, na divisa de Minas com Espírito Santo.

Quando cheguei ao evento, Ailton falava da morte do Rio, afogado na lama.

Tento reproduzir, de memória, as palavras dele: "o rio está morto, é um cadáver sob o céu. As crianças e os cachorros não podem entrar. Não podemos deixar. Os cães, se entram na lama ficam petrificados, as unhas crescem endurecidas, as patas atrofiam e endurecem. Se a criança entrar, os poros se fecham e a pele começa a criar uma crosta, tem que ser internada no hospital".

"A água para beber vem do ES em caminhões pipa que atravessam a fronteira o tempo todo, como comboio de trem. Valadares está sendo abastecida com água do ES. Não tem mais água limpa depois que a lama matou o Rio Doce e o Paraopeba".

"As pessoas perguntam: porque vocês não vão embora? Não mudam a aldeia? Nós respondemos: não vamos sair. Estamos velando o corpo do rio. Não vamos deixar o cadáver aqui abandonado, sozinho. Você deixaria o corpo de um amigo, um parente? Não vamos embora."

É o que estamos fazendo. Nesse ritmo, logo estaremos velando o corpo morto da nossa história. Envenenamos a água em nome do consumo, desprezamos o conhecimento em nome da religião ou da preguiça intelectual, competimos em nome da "vitória" sobre o outro, aceitamos o sofrimento de metade da humanidade em nome do mérito. E nos achamos bons...

Alguns até se sentem felizes, dizem. Alienam-se, capazes de abandonar o corpo sangrando de um amigo na beira da estrada, ou no leito do vale, e seguir.

Outros, "achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer."

"Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação", constatava Drummond nas ruas de minério de Itabira.
"Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas."

Sem mistificação. Sem a ilusão de que somos "uma 'huma nidade'", constata Krenak hoje, da sua aldeia às margens do córrego Itaberinha. Não somos. Não há de ser feito da mesma matéria, dos mesmos afetos, esse que chora o corpo do rio e aquele indiferente que segue, "Oitenta por cento de ferro nas almas", e quem sabe quanto na pele. Mas ele segue, até que os poros se fechem e a pele vire uma crosta, dura e insensível, como sua alma.

Não somos "uma 'huma nidade'", e isso é um alento...


Foto: exame.abril.com.br/brasil/por-agua-indios-ocupam-ferrovia-da-vale-em-mg-ha-4-dias



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