Carta para José

Dia 25 foi aniversário de José. E eu não escrevi a ele uma carta. Por dois motivos. Não, esquecimento não está entre eles. Primeiro, tive receio que José não conseguisse ler a carta. Acontece que não tenho nada que se possa chamar caligrafia. Aqueles símbolos estranhos que vez ou outra a mão deixa no papel, causam-me estranhamento: o que seriam? Teriam algum significado oculto, cabalístico, que não alcanço? Não sei.
Professora Salete bem que tentou. Mas esse seu esforço foi em vão...

Poderia ter digitado a carta, mas talvez José achasse indelicado. Mandado email? José não aderiu totalmente a essas quinquilharias eletrônicas. Alguém que bebeu na fonte Guimarães Rosa, que trilhou muitos dos caminhos do itinerário de Riobaldo Tatarana, nadou no Velho Chico, deve achar esses brinquedos aborrecidos. Aos 86 anos, José prefere viajar a navegar virtualmente. Visitar amigos, irmãos.
"Pra que céu?", costuma dizer quando observa a vida de um ângulo que o agrada.

O outro motivo para não ter escrito é que não anotei o seu novo endereço.

Além de encantado pelo Grande Sertão Veredas, José também estudou profundamente a obra. Sobre ela criou impressionante material que ainda o convenceremos a publicar.
Seu outro encantamento foi Maria, com ela constrói e vive sua história. Quem sabe ele resolve nos contar essa também...

E José escreve cartas. Dessas que vão pelo correio, com selo. Guardo uma carta sua em lugar que sempre posso ver. Além da lembrança dele, não me deixa esquecer do grande prazer de algo tão simples.
Quem já esperou o carteiro chegar sabe que esperar uma carta e esperar pela festa devem ser as únicas esperas que valem a pena. As outras são pretextos para não viver.

Guimarães Rosa nos conta, no seu "Grande Sertão: Veredas", sobre a carta de Nhorinhá a Riobaldo, perdida durante 8 anos pelo caminho. Finalmente chegou: "Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo [...] Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor."

Joana nos conta de tempos quando as cartas eram o seu elo com o mundo, o velho mundo deixado para trás, para sempre. Será que alguém guardou suas cartas, amarradas em fita? Teriam sido queimadas, esperadas, relidas, esquecidas?

Quantas histórias de vidas e de povos foram seladas por uma carta?

José, meu amigo querido, que os mensageiros de boas novas sempre chamem à sua porta.

Um pedacinho do Grande Sertão pra você.

Vereda - Jalapão - Tocantins
"Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anú-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel."


Comentários

  1. Só a Mari mesmo para escrever coisa tão linda!! Obrigada, em nome de meu pai.

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  2. Obrigada a você. Espero que ele goste.
    Beijo grande

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