O resgate de um olhar na multidão

A ciência que nos decifra, observando a nossa comunicação silenciosa, diz que quando andamos na multidão tomamos atitudes para proteger nossa integridade do olhar do outro. O olhar do outro nos devassa. E protegemos principalmente nosso próprio olhar. Não encaramos quem nos cruza o caminho, evitamos os olhos, andamos com o olhar levemente fora de foco. Se, por descuido, alguém vier ao nosso encontro, ameaçando nosso espaço mínimo de segurança, emitimos um sinal com o olhar, desviando-o para a direção que pretendemos tomar, indicando ao outro que deve seguir para o lado oposto.

Vale do Quilombo - RS
Mas um dia, sem aviso, um dia igual a ontem, sem a chuva na janela, sem a neblina na montanha, sem o beijo desejado, sem a tristeza criadora, dia em que apenas se espera amanhã, nesse dia a ciência falha. Então encontramos um olhar na multidão. Durante 2 segundos, 3 segundos, a vida fica suspensa e entramos no universo do outro. São segundos de absoluto silêncio, de busca. Não é o mesmo olhar que observa a sensualidade, a beleza de um corpo que atrai. É um olhar que se reconhece. Clarice Lispector o define.
"Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões."
Desse encontro nos despedimos sem um rosto para lembrar, apenas um olhar. Apenas o silêncio, o esquecimento de si e o vislumbre do outro. A vertigem e o desejo de reencontro.
Mas como resgatar um olhar perdido numa multidão de cinco milhões de olhares?

Na noite desse dia, havia neblina nas montanhas...


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