ferida ou como eliminar alguém da sua vida

A obra ferida ou como eliminar alguém da sua vida, de Rafael Fernandes, criada entre 2010 e 2011, foi exposta no Palácio das Artes, Belo Horizonte, em junho e julho de 2012, na mostra fotográfica segue-se ver o que quisesse.

A série mostra nove fotografias de um casamento - com data impressa de out/82. São fotos tradicionais da cerimônia religiosa, tomadas dentro de uma igreja decorada com flores e fitas. Na parede do fundo, onde se imagina o altar, alguns quadros com imagens simbólicas. Nota-se, também, a ausência de quadros e estátuas de santos, sugerindo não se tratar de uma igreja católica. Reforçando essa leitura, a cerimônia é realizada por dois homens vestidos com terno e gravata, não se vê um padre com batina.

As fotografias mostram os noivos entrando na igreja, os ritos do casamento e a saída. Também aparecem convidados nos bancos de madeira, distribuídos em duas fileiras, separadas por um corredor central.

São fotos em cores, mas tem aparência envelhecida, 'desbotadas' pelo tempo. As imagens não parecem ter nenhum tratamento. O formato é quadrado, aproximadamente 9cm, com cantos arredondados. Estão emolduradas em madeira escura, com margens brancas formadas pela própria parede onde estão fixadas.

Intercalados às fotografias, pode-se ler textos datilografados em papéis com o mesmo formato, tamanho e moldura das fotos, escritos entre aspas, como citações. Mas não há referência de autoria.

O 'susto' da obra fica por conta da ausência do noivo em todas as fotos. Não que ele não estivesse lá. Estava, mas foi cuidadosamente recortado, com um estilete ou tesoura, e retirado delas. Em seu lugar, apenas a silhueta branca. Um vazio, deixando ver a parede atrás.

Segundo o autor, são fotos do casamento de seus pais. Depois da separação do casal, sua mãe fez o 'procedimento cirúrgico', apagou o noivo e guardou-as assim. Recentemente, ele as resgatou e montou a sequencia.

Quando voltei sozinha à exposição segue-se ver o que quisesse, para observar melhor a obra que me havia impressionado na primeira visita, custei a encontrá-la. Não lembrava de sua localização exata, nem da sala, mas não tinha dúvidas de que estava colocada em um canto, como que esquecida na parede. Também não havia nenhuma lembrança das pessoas retratadas nela ou de outras obras próximas, lembrava apenas das pequenas fotos emolduradas, desbotadas e solitárias, num canto da sala enorme.

Enquanto procurava, lembrei de outras fotografias: quando mudei para Belo Horizonte, encontrei, no maleiro de um armário do apartamento alugado, uma série de fotos antigas. Nelas, um casal de velhinhos e várias crianças, em diferentes poses, pelos cômodos do apartamento. No verso de algumas, escrito à mão, mensagens dos netos para os avós. Falavam que sentiam saudades e que as férias com eles foram divertidas. Juntei todas e entreguei na imobiliária, esperando que voltassem a algum de seus retratados. Tempos depois, conversando com vizinhos, soube que eram de proprietários mais antigos, que já estavam mortos. Os filhos e netos moravam em outras cidades. As fotos, certamente, foram para o lixo da imobiliária.

Dessas, também não guardei lembranças dos fotografados, apenas da forma como as encontrei. O maleiro era alto e profundo, o piso feito de cimento, com portas de madeira. Para alcançá-lo, foi preciso subir em uma escada. Abri a porta e lá estavam as fotos, espalhadas sobre o cimento não polido, algumas viradas para baixo, outras não. Limpas e preservadas. Por que teriam sido deixadas para trás? Foram esquecidas, caíram de um álbum? Alguém notou sua falta ou guardava lembranças dos dias em que foram feitas?

Procurando a ferida, ocorreu-me que deveria tê-las guardado e, quando mudei do apartamento, devolvê-las ao local onde as encontrei. Elas pertenciam a ele, eram parte da sombra do maleiro. Outros moradores, quando as encontrassem, criariam sua própria história para elas, como eu criei. E talvez também as deixassem lá quando partissem. Seus personagens, anônimos e silenciosos, renasceriam nas histórias imaginadas de cada novo morador.

Quando encontrei as fotos de Rafael Fernandes, elas realmente ficavam no final da parede, quase no canto. E lá estavam os espaços vazios, onde antes esteve um noivo em dia de núpcias, os cortes geométricos, apagando não apenas seu rosto, mas o corpo todo. Que amor tamanho ou que ódio persistente levou a noiva a esse planejado apagar de vestígios? O que teriam vivido, ou deixado de viver, nos anos que se seguiram às fotos? Estivessem elas inteiras, teriam a mesma capacidade de tocar os visitantes, de os instigar? Ronaldo Entler diz que
A fotografia nos coloca em contato com  a realidade, mas de modo incompleto: atesta a presença do objeto, mas pouco diz sobre ele. Trata-se de um apontamento vigoroso, porém, quase mudo. Ao historiador cabe preencher algumas lacunas para formar um relato sobre essa realidade. Já os artistas percebem nesse “silêncio” um espaço para o imaginário. Não menosprezam a força que liga a imagem ao objeto, mas tiram proveito daquilo que falta. Assumem a precariedade dessa ligação, sem negá-la. E mostram como o desejo é fisgado, não apesar do pouco que a imagem oferece, mas exatamente porque não oferece tudo.1
Parece ser exatamente esse o caso de ferida ou como eliminar alguém da sua vida. Uma obra onde a fotografia, exatamente através daquilo que não mostra -  por uma resignificação não intencional feita pela mãe do autor - torna-se mais eloquente do que sua referência ao real, levando o observador além dele. Nela, não se encontra resposta a nenhuma das perguntas levantadas. Mas,
Sem uma resposta que possa apaziguar definitivamente a pergunta, mais instigante é manter presente a interrogação.2


As fotos expostas podem ser vistas em
http://www.flickr.com/photos/fernandessalves/sets/72157624647483832/


1. ENTLER, Ronaldo. Testemunhos silenciosos: uma nova concepção de realismo na fotografia contemporânea. Revista Ars, nr 8. São Paulo: ECA, USP,2006, p.37
2. Idem, p.39

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